Hoje acordei cedo, com vontade de resolver as mil e uma
pendências que sempre vou deixando para depois. Abri os olhos, pulei da cama,
com uma pressa gigante de deixar tudo certo, arrumado, em seu devido lugar.
Coloquei uma camiseta velha e comecei a tirar tudo do meu guarda-roupa, tudo
que era velho e não prestava mais. Em poucos minutos eu estava em volta do mais
completo caos: meias, camisas e casacos há muito esquecidos; livros, agendas de
anos anteriores, revistas da minha época de adolescente... Estava tudo ali,
espalhado pelo casa, no sofá da sala até na mesa da cozinha. Em meio a poeira
que já se levantava e a minha vontade de continuar descobrindo os tesouros
escondidos no fundo do baú, encontrei surrado álbum de fotografias. E, como
sempre, a chance de rever fotos antigas e lembrar os acontecimentos do passado,
me dominaram. Larguei toda aquela bagunça, me sentei na poltrona mais próxima e
comecei a viajar no passado.
Logo na primeira foto, uma onda de nostalgia quase me
afogou. Era uma foto muito mal tirada, sem foco algum, mas que retratava muito
bem os rostos vermelhos de sol e cobertos de sorrisos. Aquela foto, eu me
lembro bem agora, foi tirada em nossa primeira viagem, aquela em que ainda
éramos melhores amigos e que nem imaginávamos a reviravolta que nossas vidas
dariam. Eu mal me lembrava o motivo de tanta risada, nos conhecendo bem posso
apostar que naquele momento a gente ria descontroladamente de algo sem sentido.
Bem nossa cara mesmo. As próximas fotos foram tiradas logo no comecinho do
nosso namoro. Aqueles dias beiravam a perfeição, com exceção, claro!, dos
momentos tensos que passamos, tentando fazer a travessia entre amizade e
namoro. Não foi tão simples quanto parecia, mas parece que conseguimos, não é
mesmo?
Continuei virando as páginas, rindo de algumas fotos,
principalmente as fotos da época que você usava aquele corte de cabelo horrível
(ok, era a moda do momento, então é compreensível...), tentando lembrar de
outras, o que estava acontecendo naquele momento exato em que o clique foi
feito. Nesse vai e vem de páginas e momentos, encontrei um papelzinho bem
dobrado, parecendo esquecido ali naquele álbum há milênios. Minha primeira
reação foi amassar o papelzinho e jogá-lo na pilha que estava bem à minha
frente – toda faxina tem uma pilha dessas, a “pilha de papéis, embalagens e
mais coisas que são lixos, mas que por alguma razão, estão todas no nosso
guarda-roupa” -, porém uma curiosidade bateu muito forte e decidi abrir o
papel. Era uma passagem de trem, antiga, daquelas que nem existem mais, com
destino a essa cidade mesmo. Eu lembro desse dia como se fosse hoje, agora.
Lembro também os dias (semanas, meses e anos) que os antecederam, as dúvidas
que ainda tínhamos, seu medo de largar todas as coisas em sua cidade e embarcar
no meu sonho. Havia dias em que você acordava decidida: ia se mudar pra cá e
não se discutia mais isso. Passavam, então, alguns minutos e você mudava de
ideia, dizendo “não posso deixar de sonhar meus sonhos, para sonhar os seus”.
Ficávamos angustiados demais, você por causa do tamanho da escolha que
precisava fazer e eu porque sabia que sua escolha ia causar uma mudança
irreversível em minha vida também. Foi naquela época, mais do que nenhuma
outra, que tive certeza absoluta do que eu queria e que você fazia parte do
pacote.
Você se lembra do tempo que demos, uns dias que tiramos
para pensar em tudo que queríamos e como poderíamos unir tudo isso? A distância
que nos separava não era mais física apenas, de quilômetros e quilômetros entre
minha nova cidade e a sua. A decisão que precisava ser tomada estava nos
deixando longe um do outro, tão longe que nem amigos conseguíamos ser. Nunca vivi dias tão longos e nem senti
tamanha ansiedade, esperando pacientemente (nem tão pacientemente assim) você
fazer sua escolha. Cheguei até comprar um guarda-roupa maior, crente que você
decidiria por nós e viria para cá, mas essa onda de otimismo passou rápido e
logo devolvi o móvel. O vendedor deve ter me odiado, mas fazer o quê? Depois de
duas semanas, que mais pareceram dois anos, você simplesmente apareceu na minha
porta (usou esse bilhete de trem que está aqui nas minhas mãos agora, todo
dobradinho e rasgado nas pontas) e disse, super rápido e alto demais, como que
para ter certeza que você mesma não
mudaria de ideia: “deixei de sonhar os meus sonhos, para sonhar os nossos
sonhos a partir de agora”. Desde aquele dia, você dominou minha casa, enchendo
cada canto com sua decoração duvidosa e sua bagunça estranha. De repente, tudo
ficou muito colorido, confortável e barulhento.
Voltei à realidade, olhei em torno e percebi que
precisava terminar aquela tal arrumação e que o propósito do dia era resolver o
que eu vinha postergando há meses... Pensei seriamente em jogar o bilhete na
pilha de lixos, mas então lembrei que a próxima grande faxina era sua e resolvi
deixar o bilhete ali no álbum, no mesmo lugar, como se eu nem tivesse toca
nele. Eu sabia, assim como sabia tudo a seu respeito, que você faria o mesmo
caminho que eu fiz esta manhã e chegaria nesse mesmo ponto. Você, então, se
sentaria nessa mesma poltrona, olharia as fotos e se recordaria das mesmas
coisas que eu recordei, até chegar ao bilhete. E o bilhete, com seu nome e
tudo, te faria lembrar do que te trouxe aqui, até com maiores detalhes, já que
tudo te envolve de uma forma maior. Assim, quando eu chegar em casa, depois do
trabalho, e ir te dizer oi, você me dará aquele sorriso cheio de segredo, com
todas memórias vivas em você e tudo isso, até essa bagunça enorme em que se
encontra minha casa, terá valido a pena.
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