terça-feira, 7 de março de 2017

Bilhete

Hoje acordei cedo, com vontade de resolver as mil e uma pendências que sempre vou deixando para depois. Abri os olhos, pulei da cama, com uma pressa gigante de deixar tudo certo, arrumado, em seu devido lugar. Coloquei uma camiseta velha e comecei a tirar tudo do meu guarda-roupa, tudo que era velho e não prestava mais. Em poucos minutos eu estava em volta do mais completo caos: meias, camisas e casacos há muito esquecidos; livros, agendas de anos anteriores, revistas da minha época de adolescente... Estava tudo ali, espalhado pelo casa, no sofá da sala até na mesa da cozinha. Em meio a poeira que já se levantava e a minha vontade de continuar descobrindo os tesouros escondidos no fundo do baú, encontrei surrado álbum de fotografias. E, como sempre, a chance de rever fotos antigas e lembrar os acontecimentos do passado, me dominaram. Larguei toda aquela bagunça, me sentei na poltrona mais próxima e comecei a viajar no passado.
Logo na primeira foto, uma onda de nostalgia quase me afogou. Era uma foto muito mal tirada, sem foco algum, mas que retratava muito bem os rostos vermelhos de sol e cobertos de sorrisos. Aquela foto, eu me lembro bem agora, foi tirada em nossa primeira viagem, aquela em que ainda éramos melhores amigos e que nem imaginávamos a reviravolta que nossas vidas dariam. Eu mal me lembrava o motivo de tanta risada, nos conhecendo bem posso apostar que naquele momento a gente ria descontroladamente de algo sem sentido. Bem nossa cara mesmo. As próximas fotos foram tiradas logo no comecinho do nosso namoro. Aqueles dias beiravam a perfeição, com exceção, claro!, dos momentos tensos que passamos, tentando fazer a travessia entre amizade e namoro. Não foi tão simples quanto parecia, mas parece que conseguimos, não é mesmo?
Continuei virando as páginas, rindo de algumas fotos, principalmente as fotos da época que você usava aquele corte de cabelo horrível (ok, era a moda do momento, então é compreensível...), tentando lembrar de outras, o que estava acontecendo naquele momento exato em que o clique foi feito. Nesse vai e vem de páginas e momentos, encontrei um papelzinho bem dobrado, parecendo esquecido ali naquele álbum há milênios. Minha primeira reação foi amassar o papelzinho e jogá-lo na pilha que estava bem à minha frente – toda faxina tem uma pilha dessas, a “pilha de papéis, embalagens e mais coisas que são lixos, mas que por alguma razão, estão todas no nosso guarda-roupa” -, porém uma curiosidade bateu muito forte e decidi abrir o papel. Era uma passagem de trem, antiga, daquelas que nem existem mais, com destino a essa cidade mesmo. Eu lembro desse dia como se fosse hoje, agora. Lembro também os dias (semanas, meses e anos) que os antecederam, as dúvidas que ainda tínhamos, seu medo de largar todas as coisas em sua cidade e embarcar no meu sonho. Havia dias em que você acordava decidida: ia se mudar pra cá e não se discutia mais isso. Passavam, então, alguns minutos e você mudava de ideia, dizendo “não posso deixar de sonhar meus sonhos, para sonhar os seus”. Ficávamos angustiados demais, você por causa do tamanho da escolha que precisava fazer e eu porque sabia que sua escolha ia causar uma mudança irreversível em minha vida também. Foi naquela época, mais do que nenhuma outra, que tive certeza absoluta do que eu queria e que você fazia parte do pacote.
Você se lembra do tempo que demos, uns dias que tiramos para pensar em tudo que queríamos e como poderíamos unir tudo isso? A distância que nos separava não era mais física apenas, de quilômetros e quilômetros entre minha nova cidade e a sua. A decisão que precisava ser tomada estava nos deixando longe um do outro, tão longe que nem amigos conseguíamos ser.  Nunca vivi dias tão longos e nem senti tamanha ansiedade, esperando pacientemente (nem tão pacientemente assim) você fazer sua escolha. Cheguei até comprar um guarda-roupa maior, crente que você decidiria por nós e viria para cá, mas essa onda de otimismo passou rápido e logo devolvi o móvel. O vendedor deve ter me odiado, mas fazer o quê? Depois de duas semanas, que mais pareceram dois anos, você simplesmente apareceu na minha porta (usou esse bilhete de trem que está aqui nas minhas mãos agora, todo dobradinho e rasgado nas pontas) e disse, super rápido e alto demais, como que para ter  certeza que você mesma não mudaria de ideia: “deixei de sonhar os meus sonhos, para sonhar os nossos sonhos a partir de agora”. Desde aquele dia, você dominou minha casa, enchendo cada canto com sua decoração duvidosa e sua bagunça estranha. De repente, tudo ficou muito colorido, confortável e barulhento.
Voltei à realidade, olhei em torno e percebi que precisava terminar aquela tal arrumação e que o propósito do dia era resolver o que eu vinha postergando há meses... Pensei seriamente em jogar o bilhete na pilha de lixos, mas então lembrei que a próxima grande faxina era sua e resolvi deixar o bilhete ali no álbum, no mesmo lugar, como se eu nem tivesse toca nele. Eu sabia, assim como sabia tudo a seu respeito, que você faria o mesmo caminho que eu fiz esta manhã e chegaria nesse mesmo ponto. Você, então, se sentaria nessa mesma poltrona, olharia as fotos e se recordaria das mesmas coisas que eu recordei, até chegar ao bilhete. E o bilhete, com seu nome e tudo, te faria lembrar do que te trouxe aqui, até com maiores detalhes, já que tudo te envolve de uma forma maior. Assim, quando eu chegar em casa, depois do trabalho, e ir te dizer oi, você me dará aquele sorriso cheio de segredo, com todas memórias vivas em você e tudo isso, até essa bagunça enorme em que se encontra minha casa, terá valido a pena.


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